Fica comigo...

 

Depois da caminhada matinal, sempre iniciada às cinco da madrugada, chega em casa e diz: Chega! A mulher nem se assustou, nem entendeu. Calada estava, calada ficou. O filho mais novo, sono ainda na fase pré-escolar, olhinhos pregados, boca sem lavar, mal pensou: Pirou! O mais velho, barba aparada, sorriu pelo canto da boca um "bebeu"? Não tomou café, tomou banho rápido, roupa de sempre. Trabalho. Abriu com vigor a porta e disse: Chega! Ontário, o seu colega mais antigo, o que tinha nome de cidade do Canadá, só fez apontar com o dedão para a sala ao lado. O chefe tá aí, dizia o dedo do Ontário. Almeida Filho, o abominável Almeidinha, o que tinha resposta para tudo, fez cara de espanto, não pelo gesto, não pelo chega, mas pelo chefe, que estava ali... Não esperou, não parou de caminhar. Chega na sala do chefe e diz: Chega!

 

Ônibus, que avião custa caro. Dois dias inteiros e oito conexões depois, rodoviárias cada vez mais sujas, chegou a um lugar qualquer que julgou ser o fim do mundo, de tão longe do seu antigo ponto de referência. Primeira sensação que lhe veio quando pôs os pés naquelas terras  foi a fome. Enfim a fome, pensou. Já estava mais alegre, já sentia vontade de viver. Restaurante. Restaurante? Pensão. A moça veio e lhe perguntou o que gostaria senhor? Educada, a moça avisou: Só sai prato feito, o especial acabou. Feito. Prato. Um montinho arrumado, macarrão, feijão de caldo, arroz, carnes, tomates, cebolas. Quer pimenta? Quis e ardeu-lhe e chorou pela primeira vez. Choro bom, macio, como de quem nasce embaixo d’água. A salada, o caldo grosso da galinha, tudo parecendo tão bom e novo que o choro deu em uma risada breve, consciente. Quer uma pinguinha não? Quis e lhe subiu um fogo nas têmporas e ele comeu até fartar-se. Café? Café. Vai passar ainda, acabou. Espera. Os pés reclamavam cuidado, inchados de ônibus. Sapatos fora, um alívio. Pensou na mala. O que trazia consigo? Todos os anos da sua vida? Dois livros apenas. Onde ficaram os outros? A caixa com os papéis poemas. Todos estariam ali? E o que fiz naquele dia naquele lugar? Camisas, calças, poucas. As sandálias estavam lá, certeza. Barbeador não. Comprar barbeador. Primeira decisão livre. Que coisa simples é viver, pensava.Vai demorar um pouco, cabô o gás. Certo. Vai pagar logo? É quatro, o café é de graça. Quatro. Que barato é viver, achou. A carteira. Lá a foto de sempre, de tanto tempo. Viu a foto. Tem trocado. Tenho. Pagou. E agora, e depois do café? As coisas começam a se complicar, disse. A moça. Podia perguntar e então tomar um rumo.

 

A moça lavava copos agora. Era bonita. Era linda. Só então reparou nisso, só quando ela se virou, da pia, e perguntou se tinha gostado da comida. Muito. Morena, traços fortes, olhar profundo. Gostosa. Fora dos seus planos qualquer relação, mesmo a mais casual. Nada. Descanso e solidão. Queria, precisava. O café não vai sair não? Vai. Saiu. Cheiro novo e bom. Um cigarro. Sem culpa e sem cinzeiro, pelo visto. Batia com prazer a cinza no chão. A moça via e nada falava. O melhor café da sua vida. Outro. Agora bebia mais devagar, saboreando toda a bebida. Rapadura? Sim, sim. Pequenos pedaços de sabores perdidos. Delícia era a vida, pensou. O café era de graça. Outro. O direito é só um. Eu pago. Certo. Melhor ainda do que os outros dois. Tudo ia ficando cada vez melhor. Os pés então nem se fala. Não calçaria mais sapatos. Não andaria mais de ônibus, não faria mais tanta coisa...

 

Dormir. Tomar banho. Iria dormir sem parar, por muito tempo, depois tomar banho. Dormir sem tomar banho. Segunda decisão livre. A moça veio buscar o copo, pegar o dinheiro. Era mais do que linda. Agora a via de perto, agora notava todos os detalhes do seu corpo, o jeito de falar. Ela olhava para ele? Olhava. Parada. Pegou o copo, pegou o dinheiro, mas permaneceu ali, magnífica. Sua meia está furada, ela disse. E riu a risada mais gostosa de todo o universo. Calçou os sapatos. Desculpa, eu não tenho onde ficar e gostaria... Fica comigo, ela disse. Ficou.

 

 

Dez anos depois ele achou que enfim a conhecia completamente. Sabia de cor os seus gestos para cada ocasião, o olhar que fazia para cada coisa reprovável, os seus tiques nervosos todos. E para comer? Ele sabia cada um dos seus desejos. Fazia questão de adivinhá-los em segredo, e realizá-los. Pão quente, mas só um pouquinho. Café forte. Leite com mel. Mamão maduro. Tudo, tudo ele achava que sabia. Uma coisa só lhe desafiava. A música. Ela ouvia música o tempo todo. A música marcava o seu humor. Luxúria? "O meu amor". Nervoso? "Alô, alô, marciano". E por ai vai. Sempre música brasileira, raramente outra. Tango. O dia do tango era a maior incógnita. Certos tangos, paixão. Estes mesmos, outras vezes, profunda tristeza... Não, a música era a sua porção misteriosa, impenetrável. Isto o mantinha sempre sobressaltado, tenso. E se a música que ela ouvia agora significasse algo que só mesmo ela sabia sentir? Traição? Ele pensava que sim, sempre...

 

Era como se não tivesse, antes, vivido outra vida. Era um devoto dela, se é que se pode dizer assim. Pode sim. Era um devoto dela. Para comemorar os dez anos lhe preparou um banquete. Todos os sabores preferidos, tudo arrumado com profundo amor. A mesa mais parecendo uma tela. A disposição perfeita das cores, os cheiros mais agradáveis. Detalhes. Flores, água fresca de coco verde. E isto? E aquilo? Ela vai gostar assim? Demorou imaginando cada  pedacinho de tudo. Escreveu e reescreveu o cardápio. Inventou receitas, misturou ingredientes inesperados. Mas faltava escolher a música. Tinha que ser uma especial. Tinha que ser qual? Não sabia. Não sabia mesmo. E então chorou pela segunda vez desde que a conhecera. Não sabia tudo sobre ela. Não sabia nada sobre ela...

 

 Optou pelo comum e este foi o seu erro. "Primavera", de Vivaldi. Ela chegou. Linda. Cada vez mais linda. Os cabelos raios de sol. Os olhos estrelas. A boca cereja. Tudo pra mim? Sim. Eu te amo. Eu te amo. Ela estava feliz com a surpresa, via-se. Sorria para tudo, provava com avidez infantil um pouquinho disto, um pouquinho daquilo. Mas quando a música soou, transformou-se. Não era mais a pintura que antes estava na sua frente. Foi perdendo o brilho, parando de comer. Ficou até o fim, mas triste... levantou-se sem falar nada. Saiu. A varanda. Quando estava triste ia para a varanda e lá ele nunca se aproximava dela. Era o seu refúgio. Ele respeitava. Agora estava lá. O que pensava? Lavar a louça. Guardar as coisas. Ela continuava lá. Ler. Fumar. Quer um cafezinho, cigarro? Não. Ler. De repente o beijo. Um beijinho leve, no pescoço. Quando ela voltava da varanda era sempre assim. Tão linda. Deitar? Vamos.

 

Os que os conheciam não acreditavam que pudesse haver tanto amor. Eram poucos os amigos. Ela gostava de casa. Ele também. Passavam todo o tempo livre juntos. Não se aborreciam. Plantavam flores. Criavam cachorros. Liam os mesmos livros. Namoravam. Isto é o que mais espantava a todos. Namoravam sofregamente pelos cantos. Noite de lua? Nos becos, nus. Calor? Banho de mangueira na porta da casa, nus. Todos viam. Eles não viam ninguém. Os vizinhos eram acordados com os gemidos. Gritavam de prazer, literalmente. Ela não gritava. Uivava. Quem passava por ali percebia isto. Uma casa irradiando amor. Um ninho...

 

Hoje ela estava muito diferente. Saiu antes dele. Sozinha. Ele nem saiu. Medo. O que acontecia? Esperar. Esperar. Não voltou para o almoço. Não voltou no fim da tarde. Não voltou para o jantar. Esperar. Chegou. Demorei. É, tô morta. Eu também. Não foi trabalhar? Não. Vou tomar banho. Tá. Foi. Como se nada tivesse acontecido, como se fosse normal ele não ter ido trabalhar, como se fosse natural ela chegar tarde assim, não ter vindo para o almoço, jantar. Ninguém passava do alegre ao triste como ela. Ninguém tão alegre. Ninguém tão triste. O que você tem? Eu? Nada. E continuou o banho e depois se enxugou e sentou e penteou os cabelos. Nenhum espelho jamais refletiu uma imagem linda assim. Não se vestiu. Nua, pôs-se a ouvir "Gota d'água"... deixe em paz meu coração? O que aquilo tudo significava? Foi quando ela diminuiu o volume, olhou para ele e disse: Chega! Virou-se para o lado e foi dormir. Ela. Ele morreu ali, naquele instante, sentado no banquinho do quarto...

 

 

 

 

*

 

O cego apalpa a zebra

O seu pêlo macio

Frio

A zebra exposta ao cego

Olhar aflito, cabeça empinada

Devolve ao mundo, ao cego, muito mais do que a parte que lhe foi dada.

 

Logo atrás o alvo urso

Sem pulso

A taxidermia, a alquimia

Tua tomada para os sentidos

A morte o cego guia...

 

 

 

 

 

 

*

 

Fui escalado para ajudar o mundo

De uma forma bem  soturna

A mim não caberão os amplos palácios

Os finos cristais

Fiquei, com o rodapé

Com os porões imundos

Jamais subirei na ribalta

Mas o mundo precisa de mim

O mundo me quer (tanto que me concedeu esta herdade)

Afinal, se não eu, quem faria

O serviço sujo que é dizer a verdade?

 

 

 

 

 

 

*

 

Posição vulnerável é a sua

Sentado agora nessa cadeira

As mãos nuas

E todos esperando que você acerte o alvo

Vulnerabilíssimo estás

Quando o que fazem todos

É alterar a roda dos teus dardos

(correr pra longe com o alvo)

 

 

 

 

 

 

Rita Cadillac

 

A guerra no Iraque

Tudo de uma vez

A Rita geme

Fallujah treme

Tudo de uma vez

No windows média player.

 

 

 

 

 

 

Moringa

 

os objetos

os mais simples

tanto se parecem conosco

o prato gasto, barato, de uso diário

a fina louça intocada que nunca sai do armário

o nobre, o vassalo

os heróis e os homens simplesmente

a faca nova que muito cerca

os que projetam e os que levantam muros

a moringa que guarda a água fresca

o meu amor...

dos objetos nos servimos

nos objetos nos projetamos

eles nos cercam

deles nós nos cercamos

 

 

 

 

 

(imagem © paul klee) 

 

 

 

 

Fabiano Cotrim (Mano) é poeta e cronista amador, já que não ganha nada com isto. Professor, mora em Caetité, Bahia, e espera, um dia, publicar os seus escritos em livro.